Bahia, Brasil Universal

Há certos países cujos nomes inflamam a imaginação popular. O Brasil é um deles — um amálgama de primitivo e sofisticado, selva e elegância, ritmos complexos e harmonias jazzísticas exuberantes… não há outro lugar como este no mundo. E enquanto o Rio, ou pelo menos sua fama, tende para um extremo mais mundano do espectro, Salvador tende para o atávico. Esta é a Terra do Tambor… e com desculpas ao artista Chris Kenner da cidade-irmã de Salvador Nova Orleans (e que a compôs a gravou antes de Wilson Pickett), esta também é A Terra de Mil Danças (Land of a Thousand Dances).

Historic Center of Salvador, Bahia, Brazil

A Salvador da Bahia moderna é muitas coisas, dependendo, em certa medida, de quem a concebe e considera. É a terceira maior cidade da sexta maior economia do mundo, com inúmeros prédios modernos que se erguem como harmônicas reluzentes, ocupados por membros das classes profissionais que fazem compras em Nova York e levam seus filhos à Disney. Navios enchem a baía, levando embora plugs industriais para altos-fornos, resinas, produtos químicos… a matéria-prima da manufatura em larga escala por corporações multinacionais.

No entanto, dos 2.500.000 habitantes de Salvador, a grande maioria é descendente daqueles que trabalharam para os donos das “casas-grandes” das plantações do outro lado da baía e das casas-grandes localizadas na antiga Salvador — que hoje é um bairro, e não mais a cidade inteira — na área chamada Pelourinho (nome dado pelo pelourinho que se erguia em várias de suas praças principais).

É possível levar uma vida quase europeia em Salvador, desde que se permaneça dentro de limites cuidadosamente delimitados. Da torre ao carro importado, pelas vias expressas até prédios modernos de escritórios e clínicas… mas até mesmo um olhar das varandas dessas torres bem abastecidas desmente as fantasias de primeiro mundo; barracos de barro vermelho — casas simples, um passo acima (talvez) das favelas — se espalham pelas encostas e mergulham nos vales. Os letreiros nos ônibus urbanos de Salvador ostentam destinos como Mussurunga, Massaranduba, Periperi, Alto do Cabrito… passando por áreas chamadas Ogunjá e Bonocó.

Escolas particulares para as classes econômicas mais favorecidas oferecem capoeira ao lado de futebol, vôlei e outros esportes. Baianas de acarajé (mulheres vestidas de branco esvoaçante, sentadas diante de suas mesas vendendo o alimento chamado — mais corretamente em iorubá — akara, sendo o acréscimo de “jé” a forma de dizer “comer akara”) podem ser encontradas à noite vendendo para advogados e empresários a caminho de casa, com latas de cerveja acompanhando os quitutes africanos. Há milhares de terreiros de candomblé em Salvador, superando em número as inúmeras igrejas católicas e até mesmo as igrejas evangélicas que brotaram nos subúrbios como cogumelos, estas últimas atraindo clientes… ou melhor, fiéis… seduzidos pelas arengas que lhes dizem que Deus deseja também o seu sucesso econômico…

E o rádio. Há a Globo, de propriedade da família do já falecido Roberto Marinho, que transformou suas conexões privilegiadas com a ditadura brasileira no maior império midiático do país — tocando sua deprimente mistura de sucessos, em grande parte americanos, dos anos 70 e 80.

Mas, girando o dial, tanto no AM quanto no FM, a clave e os ritmos são, sem dúvida, de derivação africana (ainda que, na maior parte, banalizados e deturpados). A estatal Rádio Educadora, no entanto, continua a demonstrar que nem tudo aqui é (para repetir) banalizado e deturpado pelo governo, com programas ocasionais de música brasileira de alto nível, incluindo choro nas manhãs de domingo.

E, claro, há as próprias pessoas, com uma variação de melanina que vai do mais escuro tom africano, passando pelo moreno indígena, até o mais claro tom europeu, com uma preponderância inclinada para o lado mais escuro do espectro. Embora haja exceções, a sabedoria popular é bem expressa pelo sambista Ederaldo Gentil: “Todo branco tem negro na família.”

Diferentemente dos Estados Unidos, onde a regra da “uma gota” define quem é considerado “negro”, a distinção entre pessoas de ascendência europeia e de ascendência africana aqui é concebida de outra forma. Parte disso se deve ao fato de que, ao contrário dos Estados Unidos — onde os filhos de proprietários de escravizados com mulheres escravizadas eram automaticamente condenados à escravidão —, na Bahia isso muitas vezes não ocorria, gerando uma classe de pessoas de “raça mista” (que nos Estados Unidos seriam consideradas “negras”), chamadas aqui de “moreno”, e que tinham propriedade, direitos e liberdade. E com o incessante entrecruzamento de casamentos e um verdadeiro pesadelo matemático de combinações raciais nas origens das pessoas — especialmente entre as camadas populares — e a consequente comunhão de referências culturais, a ideia de “eu sou o cara negro ou branco e ele ou ela é branco ou negro” é rara aqui, exceto entre a mais alta e antiga classe proprietária de terras ou entre aspirantes a esnobes que adotam as pretensões e preconceitos dessa classe retrógrada (e não são poucos os últimos).

Salvador não é uma sociedade livre de racismo, como muitas vezes se afirma… mas as relações pessoais do dia a dia, felizmente, estão livres, na maior parte do tempo, da reserva mental e do jogo de desconfianças tão comuns entre pessoas de diferentes ascendências continentais nos Estados Unidos.

A Primeira Capital Colonial do Brasil… Salvador (a cidade foi geralmente chamada de “Bahia” até bem entrada no século XX*) está localizada em um pedaço de terra que se projeta para o sudoeste no Oceano Atlântico. E, embora esteja bem dentro dos trópicos, a uma latitude sul de treze graus, ela recebe uma brisa marítima refrescante que raramente falha até as primeiras horas da manhã, quando, de qualquer forma, a temperatura geralmente já se ameniza.

A cidade está situada em uma enorme baía, a Baía de Todos os Santos, e a topografia é predominantemente de colinas e vales. * Veja um artigo interessante do New York Times, datado de 14 de julho de 1874, no qual “nosso correspondente” (do Times, ou seja) se refere à “cidade” como “Bahia”

É por isso que as pessoas falam em cidade alta e cidade baixa. Ambas estão conectadas pelo lado da baía pelo famoso Elevador Lacerda, uma “maravilha” amplamente elogiada na maioria dos guias turísticos. Esqueça a maravilha (você vai entender o que quero dizer quando estiver nele), mas o elevador realmente é melhor do que subir e descer as ruas íngremes que cumprem a mesma função de conexão. A tarifa é de quinze centavos. Isso dá menos de três centavos, no momento em que escrevo, então, quem está reclamando?

Há também o Plano Inclinado nas proximidades, com o mesmo preço. É essa geografia acidentada que é tão desorientadora para as pessoas que são novas na cidade. Os bairros tendem a ser construídos nas alturas, com avenidas que se enrolam e se entrelaçam. As ruas fazem ziguezagues e mudam de nome, e muitas delas são de mão única, o que exige caminhos alternativos para chegar a qualquer destino. Pode levar um bom tempo para se acostumar, mas, por outro lado, isso pode adicionar ainda mais um elemento de mistério ao lugar.

Uma das principais características de Salvador é a extroversão de seu povo. As pessoas conversam com estranhos aqui, são amigáveis com eles. As pessoas não são divididas por aquela desconfiança inicial de estranhos que marca tantos outros lugares, pelo menos no que diz respeito à sociabilidade. É fácil fazer amigos. Mas há outra característica que frequentemente surpreende os visitantes de primeira viagem em Salvador: Refiro-me à paisagem urbana da cidade, sua arquitetura, os estilos de edifícios e casas. O colonial Pelourinho foi construído enquanto a Bahia era a potência econômica da América do Sul, e muitos dos edifícios são deslumbrantes. A maior parte do resto de Salvador foi construída com poucos recursos, e os resultados variam desde os barracos de barro não pintados dos pobres até os edifícios de concreto armado que vemos por toda parte (geralmente precisando de pintura), até as torres de apartamentos mais caras, geralmente sem distinção, encontradas nos bairros da classe média e classe média-alta. Pessoas que esperam bangalôs tropicais rodeados de árvores podem se decepcionar. Esta é uma cidade urbana, de terceiro mundo, com muitas multidões e engarrafamentos. No entanto, ela mantém sua renomada alma baiana, e a serenidade tropical (junto com aqueles bangalôs tropicais) está bem ao alcance.

Por fim, talvez a qualidade mais fundamental, mais elementar de Salvador e da Bahia, a mais marcante no sentido de distinguir este lugar e torná-lo único — seja o seu zeitgeist. O tempo de Bahia corre de forma independente das etapas de desenvolvimento definidas por décadas no mundo (desenvolvido). A música aqui, por exemplo, não é dos anos 70, 80 ou 90. Ela é, na verdade, medida pela sua distância — ou mais precisamente pela sua proximidade — das senzalas dos séculos passados, dos quilombos (comunidades formadas por escravizados fugitivos) tanto do passado quanto do presente. Da mesma forma, a bela e mortal arte marcial afro-brasileira da capoeira na Bahia continua a crescer e se desenvolver sem abandonar o ethos de luta que impulsionou sua criação em primeiro lugar.

Oxalá, Oxóssi, XangôYemanjá e Iansã — todos praticamente esquecidos em suas terras natais do outro lado do Atlântico — são conhecidos por todos aqui, determinando em grande parte a composição e o ritmo do calendário social anual de Salvador.

Essas manifestações da cultura popular são atuais, agora, modernas. Elas fazem referência ao passado, mas não estão presas a ele. Não são peças de museu reencenadas continuamente, mas sim parte de uma contínua florada e evolução. Em termos simples, elas são parte da vida aqui.

Importantes Primordiais: A península sobre a qual Salvador está situada é como o polegar de uma mão aberta e que se agarra, sendo o que normalmente é pensado como o Recôncavo (um lugar de enorme importância que muitos, se não a maioria, dos visitantes de Salvador, surpreendentemente, nunca chegam a conhecer) então definido pelo dedo indicador curvado. Essa forma de definição se desenvolveu quando produtos agrícolas eram trazidos para Salvador de barco, às vezes fazendo seu caminho primeiro pelo rio Paraguaçu depois de terem sido transportados por terra do sertão até Cachoeira, o rio desaguando na baía em Maragogipe. A cidade da Bahia (como normalmente era chamada na época) estava agachada na baía, composta por um distrito comercial muito menor em área do que é hoje (o aterro aumentou consideravelmente essa área), a região ao redor da seção superior do elevador, e o que agora é chamado de Pelourinho.

Baía Satélite

Grande parte do restante da península foi destinada a plantações de cana-de-açúcar, e espalhados pela mata atlântica estavam inúmeros quilombos; ambos são atestados hoje em nomes de bairros comumente usados na cidade. O bairro de Garcia foi uma vez Fazenda Garcia, e essa denominação ainda é usada hoje para distinguir uma extremidade de Garcia (fim-de-linha) da outra (a extremidade do Campo Grande). Os bairros Engenho Velho de Federação e Engenho Velho de Brotas têm esses nomes por causa dos antigos engenhos que pressionavam o caldo da cana tão laboriosamente extraído dos campos. O bairro de Cabula é nomeado em homenagem a um nkisi (divindade) do candomblé angola (o primeiro candomblé a chegar à Bahia)… cujos ritmos compõem a base para o samba, o que significa que os ritmos aos quais tantos no mundo se balançaram desajeitadamente enquanto o saxofone de Stan Getz se elevava e João e Astrud Gilberto entoavam sensualmente — esse paradigma da sofisticada suavidade brasileira — nasceram nas ásperas senzalas da Bahia. Ironicamente, a versão descalça da senzala era/é muito mais sofisticada do que a versão sofisticada.

Mas os tempos mudaram, e Cabula agora é um bairro de Salvador, lotado e sem grandes características, de classe média a trabalhadora (com bastante candomblé por lá, no entanto), e os Engenhos Velhos de Federação e Brotas são bairros populares em plena atividade (idem quanto ao candomblé); o samba de senzala, o samba chula e o samba-de-roda desapareceram. Uma versão simplificada — o pagode baiano — é ouvido por toda parte em Salvador, mas a verdadeira tradição se extinguiu aqui na grande cidade. No entanto, ela permanece uma força potente no restante de sua terra natal, o Recôncavo propriamente dito, onde ainda é dançada sobre a terra batida, sob a luz da lua quebrada pelas folhas de bananeiras, palmeiras e mangueiras, elevando as almas de seus participantes quase como algo religioso, o que era, e fora dos deuses, ainda é.

Duas Américas Negras

Os Estados Unidos foram palco de uma migração de afro-americanos do interior rural do sul para as cidades do norte, uma mudança que abalou o mundo. Esses migrantes trouxeram com eles diversos elementos de uma música que, em evolução, acabaria por dominar completamente a música da nação e da maior parte do planeta. Uma parte importante dessa história é a interseção das rodovias 61 e 49. Foi nesse local que o bluesman Robert Johnson teria vendido sua alma ao diabo para alcançar o completo e santo domínio de sua guitarra e do seu estilo musical.

O Brasil também presenciou uma migração em massa de pessoas afrodescendentes em busca de trabalho, mas aqui foi da região das plantações de cana-de-açúcar da Bahia para o sul, até o Rio de Janeiro, após a abolição da escravidão em 1888. Essas pessoas também trouxeram sua música, que, em evolução, acabaria por dominar completamente a música da nação… mas, neste caso, foi o samba.

E enquanto o blues original do “delta” permaneceu para trás — pelo menos por algumas décadas — no Mississippi, Alabama, Texas e outros… o samba primordial (samba chula / samba-de-roda) ainda permanece na terra que foi seu berço, o Recôncavo. Há até um cruzamento aqui, dominado não pelo diabo, mas pela divindade africana Exu (que foi confundido — erroneamente, é claro — pelos cristãos com Satanás): Este é o cruzamento da BA (Bahia) 420 (que vai entre as cidades de Santo Amaro e Cachoeira, ambos grandes redutos do candomblé) e da BA 878 (que se desvia da BA 420 e, após alguns quilômetros, segue pela costa interior da baía ao sul até a cidade de Bom Jesus dos Pobres).

Se ao passar por essa junção discreta, mas culturalmente carregada, alguém desacelerar ou parar, provavelmente verá vários despachos — ofertas a Exu — tigelas de barro com charutos, cachaça, aves… Exu é o abridor de caminhos, incluindo entre a terra e os reinos superiores; o guardião que vigia. Como é apropriado que ele presida no início do caminho entre o samba africano primordial da Bahia e a música nacional do Brasil (embora, no passado, a viagem para o Rio fosse feita de barco). E igualmente (pois acreditamos que foi Exu metaforicamente, e não o diabo, que estava também no cruzamento das Rodovias 61 e 49, ou 8 e 1, como alguns dizem) sobre o caminho entre as músicas primitivas do Velho Sul e as músicas nacionais dos Estados Unidos.

O samba primordial da Bahia nasceu a meros passos graciosos de distância de um riso na máscara da morte do poder presumido. Tanto ele quanto a música primordial da América fazem parte, em comum, do arsenal da humanidade não apenas como mecanismos de sobrevivência, mas como mecanismos de superação. Beleza à parte, é aí que reside sua importância.