A quantidade de festivais na Bahia é frequentemente mencionada, geralmente acompanhada do clichê “Terra da Alegria” ou algo semelhante, carregado de hipérbole.
Alegre? Isso é discutível, certamente improvável, dadas as condições econômicas amplamente difundidas por aqui. Mas animado, resiliente, apreciativo? Entre os vários traços e qualidades que formam o ethos geral da Bahia, pode-se dizer que esses três correm largos e profundos. E a vivacidade do povo comum emerge, em parte, na forma das festas populares (a maior e mais conhecida delas, é claro, é o Carnaval), festas em que as vicissitudes da vida são temporariamente deixadas de lado e tanto jovens quanto idosos vão no pé, movendo-se na expressão baiana ao ritmo da África (embora muitas vezes cobertos por uma camada de sintetizadores e estilizações pop).
O ciclo anual é geralmente considerado iniciado com a Festa de Santa Bárbara, então é por aí que começo… (Nota: Em português, o termo “festa profana” é frequentemente usado, em contraste com “festa religiosa”. “Profana” simplesmente significa um componente não religioso de algo religioso (por exemplo, um festival), diferente da conotação em inglês de algo vulgar ou irreverente.)
Festa de Santa Bárbara / (Iansã)

4 de dezembro. Santa Bárbara é sincretizada com Iansã, esposa de Xangô e deusa dos ventos, relâmpagos e tempestades (o pai da santa foi morto por um raio depois de decapitar sua filha por ela ter se tornado cristã, segundo a história, sendo essa a conexão para o sincretismo). Uma missa é celebrada em sua homenagem em um palco montado no Largo do Pelourinho (9h), e depois (por volta das 11h) uma procissão segue pelo Pelourinho até o Corpo de Bombeiros, na Baixa dos Sapateiros, onde os participantes são recebidos pelo som das sirenes (Santa Bárbara sendo a padroeira dos bombeiros) e um grande carurú é servido ao público. De lá, tudo segue para o Mercado de Santa Bárbara, onde os vendedores preparam seus próprios carurús para serem servidos ao público (17h), e onde é muito, muito lotado. Vermelho e branco são as cores a serem usadas. Epa hei!
O clipe acima é do filme de 1962 Pagador de Promessas, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes naquele ano. O cenário é a Escadaria do Carmo, que leva à Igreja do Passo (Igreja de Santa Bárbara no filme) no dia da festa.

A festa então se espalha pela rua e entra no Pelourinho, onde segue até tarde da noite. Este festival começa com doçura e alegria, mas à tarde se transforma em algo mais agitado — especialmente para turistas óbvios — na área ao redor da parte inferior do Largo do Pelourinho.

Festa da Nossa Senhora da Conceição da Praia
Você tem que reconhecer a maneira como os dias de festas católicas acontecem aqui em Salvador. Por exemplo, no dia 8 de dezembro é comemorado o dia de Nossa Senhora da Conceição, uma data que remonta a 1854, quando o Papa Pio IX declarou como dogma que Maria foi concebida sem o Pecado Original resultante da participação de Adão no consumo do Fruto Proibido no Jardim do Éden, compreensões e ensinamentos eclesiásticos que levaram a pronunciamentos teológicos sobre bebês não batizados condenados ao inferno (Santo Agostinho), mais tarde modificados para uma eternidade no limbo (como explicitamente expressado pelo Papa Pio X, para quem a escola primária que eu frequentei foi nomeada), limbo que depois foi desconsiderado pelo Papa Bento XVI (presumivelmente um grande alívio para muitas almas de bebês africanos, asiáticos e judeus, assumindo que Santo Agostinho não tenha a palavra final de Deus).



Lavagem do Bonfim
Esta é a segunda maior festa de Salvador, com data móvel, ocorrendo na quinta-feira antes do segundo domingo após o Dia de Reis (a Epifania… o dia em que o Menino Jesus foi visitado pelos Três Reis Magos guiados pela estrela) no dia 6 de janeiro (esse segundo domingo é marcado pela Festa de Bonfim, com a lavagem – originalmente uma limpeza da igreja em preparação para a festa de domingo). A Lavagem do Bonfim é um exemplo perfeito do sincretismo baiano e da fusão entre o sagrado e o irreverente, onde um grupo de Baianas carregando flores – seguido por dezenas de milhares de pessoas (um cortejo) – caminha da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Cidade Baixa, até a Igreja do Bonfim (uma igreja católica), e, ao chegar, as Baianas lavam os degraus da igreja em homenagem ao Senhor do Bonfim (que é Jesus Cristo, Oxalá, ou ambos, dependendo de como se vê). É uma grande festa durante todo o percurso, com muita batucada (percussão), e uma grande festa ao redor e atrás do Mercado Modelo (mais cedo no dia), e uma festa monumental ao redor da Igreja do Bonfim (mais tarde no dia e noite adentro). Os primeiros a chegar na Igreja do Bonfim, após os 8 quilômetros de caminhada desde a Igreja da Conceição, são as Baianas, seguidas de perto pelos políticos em busca de publicidade, seguidos pelas multidões de batuque, dança e cerveja.

A lavagem celebratória dos degraus é promovida como, e em certo sentido, de fato é, uma manifestação do sincretismo do catolicismo e do candomblé, mas o fato de serem os degraus que são lavados e não o interior da igreja em si reflete uma repudiaçao católica (e nem tão católica assim) das crenças da África Ocidental pelos líderes da Igreja. Nas palavras imortais de Paulinho Camafeu (que escreveu o hino do Ilê Aiyê, “Que Bloco É Esse”), “Quem tem fé, vai à pé”. O hino agora associado à Lavagem é “Ilha de Maré”, de Walmir Lima, tornado famoso por Alcione:

Ah, eu vim de Ilha de Maré minha senhora
Prá fazer samba na Lavagem do Bonfim
Saltei na rampa do mercado e segui na direção
Cortejo armado na Igreja da Conceição
Aí de carroça andei, comadre, Aí de carroça andei, compadre
Ah, quando eu cheguei no Bonfim minha senhora
Da carroça enfeitada eu saltei
Com água, flores e perfume,
A escada da colina eu lavei…
Festa de Yemanjá
2 de fevereiro. Uma das festas mais amadas (e belas) de Salvador, e mais um exemplo da fusão de Salvador entre o sagrado e o não tão profano. A manhã do dia 2 é anunciada com o som de fogos de artifício (às 5h), e os fiéis chegam cedo ao bairro à beira-mar do Rio Vermelho, trazendo flores e outros presentes para Yemanjá, a deusa iorubá das águas salgadas. As oferendas são deixadas na Casa do Peso (o armazém de pesca local) depois que os doadores enfrentam as longas filas até o repositório, e os presentes são reunidos e colocados em barcos que, por volta das 16h, se dirigem para o mar, a cerca de 10 km de distância, para colocar cestos flutuantes, cheios de presentes, sobre a água. As oferendas que não retornam à costa são consideradas aceitas.

Tudo isso acontece ao som de grupos de percussionistas ambulantes, capoeira de rua e uma alegria geral de abandono. Conforme o dia avança, a festa se torna cada vez mais carnavalesca – milhares de pessoas chegando – evoluindo de forma inexorável para uma festa de rua dançante e vibrante de proporções gigantescas.



Bembé do Mercado Todo 13 de Maio em Santo Amaro
A origem do nome é polêmica… alguns dizem que é uma corrupção deliberada de candomblé, feita para disfarçar o que realmente acontecia na praça do mercado. Outra visão é a da etnolingüista Yeda Pessoa de Castro, que é (minha tradução): “Bembé” é uma palavra que pode ter duas etimologias. Uma delas é do Fon (Yoruba/Nagô), onde “Bembé” significa “tambor”… Também pode ser de origem Bantu (Congo/Angola), neste caso significando uma cerimônia religiosa, louvor, uma oração, assim como a palavra candomblé em si…” Por que o 13 de maio? Porque foi nesta data, em 1888, que a escravidão foi abolida no Brasil, pela assinatura da Princesa Isabel, Princesa Imperial Regente. E foi no 13 de maio de 1889 (alguns dizem que foi vários dias antes) que o sacerdote de candomblé João Obá se posicionou à beira do rio Subaé, perto da praça de mercado de Santo Amaro, e começou a tocar um ritmo que, quando tocado em uma casa de candomblé, tinha como objetivo invocar uma divindade.

Um a um, outros chegaram e começaram a dançar as danças de candomblé no que foi a primeira instância dessas manifestações religiosas sendo realizadas fora de um local destinado para esse fim. E assim, um século depois, a tradição continua na praça de mercado de Santo Amaro, na quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado e domingo que incorporam o 13 de maio (embora a sexta-feira, sendo o dia de Oxalá e um dia em que o candomblé nunca é realizado, veja uma pausa; as outras atividades que são auxiliares ao Bembé, como o samba-de-roda, capoeira e maculelê, continuam).



O palco na praça de mercado recebe excelente música fornecida por músicos, em sua maioria de Santo Amaro, sendo esta faceta do Bembé organizada pelo estimado Maurício Pessoa.

A festa tem sido celebrada todos os anos desde então, com exceção de 1958 (quando uma explosão/incêndio matou 300 pessoas) e 1989 (quando ocorreu a maior enchente da história da cidade). A festa agora é considerada como uma proteção para a cidade!
Festa da Boa Morte em Cachoeira, Bahia
A Festa da Boa Morte é baseada na data da festa católica da Assunção (a ascensão da Virgem Maria ao Céu), mas o que faz com que ela ressoe tanto não é tanto o motivo da festa, mas quem está fazendo a celebração. Isso se refere à Irmandade da Boa Morte, uma sociedade leiga fundada por mulheres escravizadas idosas da mais baixa casta social da sociedade baiana do século XIX, mulheres que se uniram para se ajudar na vida e na morte em uma irmandade que continua até hoje. Quem disse “Idade antes da beleza” obviamente nunca esteve em Cachoeira em meados de agosto.

Primeiro Dia
19:00 – Missa na capela da irmandade, em homenagem às irmãs falecidas.
20:00 – Procissão saindo da capela da irmandade e percorrendo as ruas de Cachoeira.
21:00 – Ceia Branca (jantar sem dendê, ou seja, alimentos sem azeite de palma), para as irmãs e convidados. Veste-se roupa branca.
Segundo Dia
19:00 – Missa na capela da irmandade.
20:00 – Procissão pelas ruas de Cachoeira, acompanhada por músicos das filarmônicas da cidade.
Terceiro Dia
05:00 – Alvorada com fogos de artifício.
09:00 – Encontro solene das irmãs em sua sede, com o governador da Bahia, ministros, secretários e outros de sua estirpe.
Quarto Dia
20:00 – Distribuição de cozido (jantar com legumes e carnes cozidas) e depois, samba-de-roda.
Quinto Dia
20:00 – Cerimônias de encerramento, com caruru (refeição baseada em um prato de quiabo) e depois, samba-de-roda!