O Gênio Coletivo Abundante dos Monstruosamente Despossuídos
É noite em Salvador e você ouve tambores. Pode estar vindo de um dos numerosos terreiros de candomblé espalhados pela cidade.
A maioria dos terreiros permite que visitantes assistam às suas cerimônias. Caso decida ir, vista-se com respeito. Calças para os homens e saias mais longas para as mulheres. O branco é o mais indicado, pois é respeitoso com todos os orixás (o-ree-SHAHS).
“Orixá” é comumente traduzido como “deus”. Uma representação mais precisa seria talvez “santo”. O candomblé postula um ser supremo monoteísta — geralmente referido como Olodumaré ou Olorum (no candomblé ketu) — com os orixás sendo invocados como intermediários entre os seres humanos da terra e o todo-poderoso, assim como um cristão rezaria pela intercessão de um santo em favor de alguém. (Orixá é de longe o termo mais comum na Bahia para essas entidades (o termo ketu), embora também sejam chamados de Nkisi no candomblé angola e Voduns no candomblé jêje.)
Dizem que Salvador tem uma igreja (católica) para cada dia do ano, elas estão por toda parte. Mas esse número — ou seja qual for o número verdadeiro — é insignificante se comparado à quantidade de terreiros de candomblé em Salvador. Um projeto impressionante, o Mapeamento dos Terreiros de Salvador realmente e literalmente coloca isso em perspectiva, detalhando 1.155 terreiros (e isso não inclui Itaparica!), com mapas, fotos de satélite e outras imagens, nomes de líderes, endereços, contatos e outras informações.

Aqui está uma lista curta para quem procura candomblé em Salvador (suficientemente central) (Bate Folha não é central, mas é uma rara casa de candomblé angola na área de Salvador):
Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (Terreiro do Gantois)
Endereço: Alto do Gantois, 33, Federação
Telefone: (71) 3331-9231
Ilê Axé Opó Afonjá (Terreiro de Mãe Stella)
Endereço: Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557, Cabula
Telefone: (71) 3384-5229
Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca)
Endereço: Avenida Vasco da Gama, 463, Engenho Velho da Federação
Telefone: (71) 3335-3100
Ilê Maroiá Lájié (Terreiro de Alaketu ou Olga de Alaketu)
Endereço: Rua Luis Anselmo, 67 – Matatu de Brotas
Telefone: (71) 3244-2285
Ilé Òsùmàrè Aràká Àse Ògòdó (Casa de Oxumaré)
Endereço: Avenida Vasco da Gama, 343, Federação
Telefone: (71) 3237-2859
Mansu Bandu Kenkê (Terreiro do Bate Folha)
Endereço: Travessa de São Jorge, 65, Mata Escura
Telefone: (71) 3261-2354
A prática do candomblé foi, em um dado momento, proibida no Brasil (oficialmente por séculos de forma não oficial, e depois oficialmente por lei entre 1937 e 1945, durante o Estado Novo do ditador Getúlio Vargas, que ao mesmo tempo, ironicamente, como parte de seu plano para manipular a consciência popular como um meio de consolidar ainda mais seu poder, promoveu a música brasileira e músicas que promoviam o Brasil, como por exemplo, “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso). Após isso, na Bahia, era necessário obter uma licença, a mesma exigida para boates e estabelecimentos de jogos de azar.
Após um apelo pessoal de Mãe Stella do Ilê Axé Opô Afonjá ao governador da Bahia (Roberto Santos, no cargo de 1975 a 1979), essa exigência foi retirada, e novos terreiros surgiram — na maior parte entre os bairros mais humildes — como flores cantantes tecendo para as lindas melodias e ritmos gloriosamente complicados que invocavam Salvador, Iansã e Yemanjá, Dandalunda, Oxossi e Xangô…
Sem recursos para construir catedrais, seus templos de adoração eram casas simples, dentro das possibilidades dos escravizados fugitivos ou libertos, e os africano-brasileiros buscaram dentro de si mesmos o que poderiam projetar para fora, e o resultado de sua busca interior foi uma música e dança que elevavam e emocionavam a alma.
E essa música e dança que elevam e emocionam a alma não se limitavam às casas de candomblé. O samba veio diretamente do candomblé angola, um ritmo chamado “cabila” ou “cabula”, ou “samba de caboclo”. Esse e o ijexá, junto com uma variedade de outros ritmos, são a força motriz da música popular brasileira, fazendo-a viver, mover-se e groove polirritmico como apenas o gênio coletivo abundante dos monstruosamente despossuídos poderia.
Quero contar-lhe sobre o sofrimento que suportei em vão
Meu lamento foi criado na escravidão
Sofri a dor profunda da humilhação
Mas venci Porque carreguei Nanã dentro do meu coração
Acima, encontra-se uma música de Mateus Aleluia tirada diretamente do candomblé (e elaborada). A primeira cantora é Thalma de Freitas, acompanhada ao piano por seu pai, Maestro Laércio de Freitas. A segunda voz é a filha de Mateus, Fabiana, e Mateus toca guitarra.
As divindades que são o tema da canção são ambas figuras maternas, a primeira sendo Yemanjá, e a segunda Nanã. Saravá!
Quanto ao próprio Mateus, ele foi criado no terreiro Roça do Ventura, um candomblé Jêje em Cachoeira. A casa Jêje em Salvador é o Bogum, no bairro do Engenho Velho de Federação.
Mas Que Nada foi cantada e escrita por Jorge Ben, carioca, filho de pai brasileiro e mãe etíope. Esta é, junto com The Girl from Ipanema, provavelmente a canção brasileira mais conhecida fora do País Musical. Menos conhecido é que a letra de abertura, Ô ária raiô! Obá! Obá! Obá! Ô ária raiô! Obá! Obá! Obá!, vem do candomblé, Obá sendo uma orixá e primeira esposa de Xangô (há uma linda escultura de Obá, e outros orixás, por Carybé no Museu Afro-Brasileiro, no Terreiro de Jesus). Abaixo está a penúltima fonte da famosa abertura da música de Jorge Ben, que é uma reinterpretação de música tradicional de candomblé feita por José Prates:
E abaixo está um clipe de Jorge Ben (à esquerda) cantando sua música Mas Que Nada com Sérgio Mendes no centro e Gilberto Gil à direita.
O tocador de pandeiro, brevemente vislumbrado acima (3:02), não é outro senão Carlinhos Pandeiro de Ouro! Abaixo, um Carlinhos muito mais jovem dança (com a guitarra nas mãos) em uma das maiores cenas finais do cinema de todos os tempos (do filme Orfeu Negro, Black Orpheus; a música é Samba de Orfeu, de Luiz Bonfá):
Ritmos Fascinantes
Desconhecido para a maioria é que são os ritmos do candomblé que alimentam a poderosa concatenação das escolas de samba do Rio de Janeiro. Os toques (literalmente toques, mas neste sentido significando ritmos) das caixas — caixas de guerra — do Salgueiro são baseados em Oxossi, a divindade da caça. O Império Serrano toca um toque para Ogum nas caixas. A Portela toca Xangô, a divindade do trovão e da guerra, e Oxossi…