Você sabia que o Brasil tem deuses (fora o futebol)? No mesmo sentido que os gregos e romanos tinham? Os deuses gregos e romanos foram derrotados por Constantino (o primeiro golpe) e Teodósio (o golpe final).
Os deuses do Brasil nasceram na África e chegaram aqui nos porões dos navios negreiros que cruzaram o Atlântico na Passagem do Meio, uma viagem que transportava não apenas pessoas, mas também uma cultura. Houve um grande esforço por parte dos poderosos do Brasil para exterminar os deuses africanos em solo brasileiro, mas isso não funcionou.
Assim como os imperadores romanos tentaram extinguir a crença muito real em Júpiter, Apolo, Vênus, Minerva e outros, proibindo as cerimônias dedicadas a essas divindades, as “autoridades” brasileiras proibiram as cerimônias voltadas a Oxalá, Oxossi, Iansã, Yemanjá e tantos outros.
Mas, como aconteceu com a futilidade última da repressão comunista ao cristianismo na Rússia, na Polônia e em outros lugares, a piedade da classe dominante brasileira também não teve sucesso (vocês não conseguem, nunca, cuidar das suas próprias vidas?).
Os gregos e romanos tinham estátuas; magníficas, maravilhosamente concebidas, esculpidas e elaboradas. Os africanos tinham ritmos e melodias… ritmos magníficos, maravilhosamente concebidos, trabalhados e elaborados, sobre os quais flutuam (não estão presos, como na música ocidental) melodias que variam entre o inspirado e o sublime.
Alguns desses ritmos (um em particular) são a base da música popular brasileira. Assim como o mármore adorna Roma, o ritmo adorna o Brasil… mas, para levar a analogia mais adiante, enquanto as estátuas, com o passar do tempo, tornaram-se mais escassas, a modernização da música popular brasileira deixou os ritmos mais raros e distantes (com exceção daqueles que persistem nas casas de candomblé da Bahia, que têm se multiplicado bastante nas últimas décadas)…
Mas isso é o Brasil, não é? Com música por toda parte?

Sim, e sim, mas. O samba e suas vertentes são baseados em polirritmos. E embora se diga que a música brasileira foi enriquecida pela confluência de ritmos e melodias africanas com melodias e harmonias europeias, o componente rítmico, com a americanização dos anos 1950 e, em seguida, sob os efeitos da invasão britânica dos anos 1960 e do sucesso comercial espantoso da música do primeiro mundo, foi empobrecido.
Falando francamente, foi simplificado. Destexturizado. Anestesiado. Tiraram-lhe o fio e o ângulo. Acalmaram e suavizaram…
Testemunhem o nascimento da bossa nova e da MPB (música popular brasileira)! Sim, houve genialidade ali, mas não na parte estritamente afrodescendente da música… aquilo era antiquado, não era moderno.
Graças a Deus por pessoas “não modernas” como Paulinho da Viola! Paulinho atingiu a maioridade nos anos 60, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil foram abraçar o movimento hippie, celebrando a cultura do “podemos fazer qualquer coisa” com a invenção da tropicália, um ouvido nas calçadas de São Francisco e no cruzamento de Haight-Ashbury…
Paulinho tocava samba naquela época. Ele toca samba hoje. Música. Onde alguém canta. E as pessoas tocam instrumentos. Sem enrolação. A música de Paulinho nunca foi moderna, mas é atemporal.
O grande Bobby Sanabria citou o lendário Art Blakey ao dizer que um lugar onde o jazz é tocado é um lugar sagrado, e Bobby completou (dirigindo-se ao público do palco): “Então, obrigado por virem à igreja!”
No espírito de Art Blakey, um lugar onde o samba é tocado é um lugar sagrado… e não estamos falando de Garota de Ipanema. O samba, com todos os ataques à sua integridade, nunca deixou o Brasil.
Para citar novamente, agora com as palavras do grande Nelson Sargento: “agoniza, mas não morre.” E hoje, está até “cool”. O samba é o equivalente local daquelas estátuas romanas.