Nossa Rua no Pelourinho, o Massacre no Sertão da Bahia, Favelas e o Bálsamo Musical de Gileade do Brasil

Nossa loja Cana Brava Records está localizada no Pelourinho — o centro histórico de Salvador — na Rua João de Deus, nomeada em homenagem a um dos líderes de uma revolta com múltiplos nomes (Revolta dos Alfaiates, Conjuração Baiana — sendo “conjuração” o ato de produzir magia por encantamento), que ocorreu em 1798 e terminou com o enforcamento de João de Deus na Praça da Piedade. Essa revolta foi inspirada nas Revoluções Francesa e Haitiana e buscava estabelecer uma República da Bahia sem escravidão, com direitos e oportunidades iguais para todos.

No entanto, o nome original da rua era Rua Maciel de Cima, batizada assim por causa do casarão situado no final da rua. Este, por sua vez, recebeu o nome de seu proprietário, José Sotero Maciel de Sá Barreto. E é realmente um lugar impressionante.

Maciel Solar in Pelourinho, Salvador, Bahia, Brazil

Naquela época, quando a casa era o lar da família Maciel e um abrigo contra os elementos para seus escravos, em vez das duas ruas que agora se estendem a partir da frente da casa (a outra sendo a Rua Gregório de Mattos, anteriormente Rua Maciel de Baixo), havia uma quinta, ou um quintal, como diriam os americanos, ou um jardim nesse sentido, para os ingleses.

Com o tempo, as ruas foram abertas e casas foram construídas em ambos os lados; grandes e belas residências para os extremamente abastados.

E, como o tempo costuma fazer, continuou a passar… e os ricos se mudaram, e os menos abastados chegaram, depois também partiram, e, eventualmente — no final do século XIX — essas casas se tornaram bordéis em uma área conhecida por isso e denominada “Maciel”. Foi ali que Dionísia de Oxóssi vivia, no romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado, onde Dona Flor foi em busca da mulher com quem suspeitava que seu marido estava tendo um caso, encontrando-a vivendo nas condições mais degradantes. Também é onde, no romance Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, Ester, amiga de Pedro Archanjo (Pedro Arcanjo), era dona de um prostíbulo. E onde, no romance Tereza Batista Cansada de Guerra, Vavá era um cafetão bem-sucedido, que chegou a possuir uma casa com um comércio de secos e molhados no andar de baixo e prostituição no andar de cima.

Com tudo isso, é também onde o avô de Dorival Caymmi viveu quando Caymmi era menino, e onde ele passou momentos felizes de sua infância (na nossa rua, Rua João de Deus/Maciel de Cima)…

Quase certamente foi para essa área — pois, de maneira não oficial, este era o Storyville de Salvador — que as mulheres sobreviventes do massacre conhecido como “A Guerra de Canudos” foram levadas e forçadas a trabalhar como prostitutas… selecionadas entre os cerca de 150 sobreviventes de um grupo que havia sido de 25.000 — ou talvez 15.000 — seguidores de Antônio Conselheiro, o Profeta do Sertão. Aos vencedores, os despojos.

Canudos, Bahia
Cativos de Canudos, 2 de outubro de 1897. Fotografia de Flávio de Barros, que, na última década do século XIX, mantinha um estúdio de retratos na Rua do Lyceu, hoje Rua do Saldanha, no que hoje é o Pelourinho. No início do século XX, ele possuía uma loja — Photographia Americana — na Rua da Misericórdia, sobre a qual a janela à minha frente se debruça enquanto escrevo estas palavras…

Muitos dos soldados, igualmente recrutados dos áridos sertões do nordeste brasileiro, ao final da “guerra”, não tinham para onde ir — ou, pelo menos, nenhum lugar que não oferecesse terras secas, mato, cactos e ossos branqueados de gado morto de fome e sede… Assim, esses ex-soldados partiram em direção ao magnetismo encantador do sul: o Rio de Janeiro.

Mas lá, para eles, com quase nenhum dinheiro, não havia lugar… então eles criaram o seu próprio em um dos morros: o Morro da Providência. Foi o início das agora famosas — ou infames, dependendo de como se olha — favelas nos morros do Rio. Fora de Canudos, há outro conjunto de morros, um deles chamado pelo nome de uma planta muito comum na região: favela. Esse nome passou a ser aplicado informalmente ao Morro da Providência, e suponho que não seria irracional imaginar que alguns dos moradores da nova Favela fossem originalmente moradores da original. Seja como for, “Favela” eventualmente se tornou “favela”, e essas favelas hoje abrigam milhões.

Durante o século XX, a trilha sonora da vida nas favelas foi o samba. A música cumpria a mesma função espiritual que desempenhava nas plantações de cana-de-açúcar da Bahia: elevar o espírito e também o corpo. O samba era elegância em vidas que pouco tinham dela. O samba ainda está presente hoje, embora tenha perdido espaço para o funk carioca (um “carioca” é alguém do Rio), que não eleva o espírito humano, mas sim o desgasta. No entanto, o verdadeiro samba está tão entrelaçado ao DNA do Brasil (pelo menos dentro do eixo Rio de Janeiro – nordeste, o que a maioria dos não brasileiros associa ao Brasil) que está lá como um anjo da guarda do qual as pessoas nem têm consciência.

Cartola in Mangueira, Rio de Janeiro, Brazil
Um dos maiores sambistas do Brasil, Cartola, em seu bairro Mangueira, uma favela no Brasil.

Do sertão baiano ao Maciel, passando pelas favelas do Rio… o samba é o Bálsamo de Gileade do Brasil. Na Cana Brava, na Rua João de Deus, temos orgulho de ser algo como um ponto de conexão para ele.