Pré-Carnaval: O fuzuê acontece como um desfile ao longo da orla da Barra no sábado antes do início oficial do Carnaval. Consiste em manifestações culturais autênticas, de verdadeiros filhos da terra, produzidas por pessoas humildes e pobres, muitas vezes de forma astuta e oblíqua:
Utilidade direta e sem adornos facilita a compreensão das coisas. Um carro te leva a lugares. Um telefone serve para comunicar (ok, talvez esse já não seja um exemplo tão bom). Manifestações culturais geralmente têm uma utilidade psicológica. E quando a mente humana está envolvida, é comum que as coisas sejam tudo, menos diretas.
Os Mandús como exemplo. Eles dançam pelas ruas de Cachoeira durante as festas. Como pequenos homens com grandes “cabeças” de tecido na forma de cilindros baixos (o tecido sendo o mesmo que as mulheres locais usam para fazer saias; o tecido colocado sobre o topo da “cabeça”, uma peneira redonda e trançada). Os braços, na altura da cintura, se estendem para fora, terminando em grandes mãos planas.
Os Mandús se sacodem e brincam enquanto descem a rua, às vezes batendo nas nádegas de outros foliões com aquelas grandes mãos. WTF?

São garotos lá dentro. A brincadeira foi inspirada no culto dos Egunguns na ilha de Itaparica, rio abaixo e do outro lado da baía. Os Egunguns são espíritos ancestrais que retornam para se manifestar dançando sob tecidos altamente bordados, sustentados no topo por algo quadrado…alguma coisa.
Os Mandús são almas ancestrais fingidas dançando, brincando e dando palmadas nas nádegas. O que, se é que há algo, eles são além disso?…

Depois, há as cabeçorras. “Homens” altos, com grandes cabeças de papel machê, com cinturas largas (formadas por algo como um aro de hula hoop sob o tecido que cobre seus corpos) balançando para lá e para cá como se estivessem sacudindo as nádegas, esses homens (os representados) sendo os grandes, os poderosos, os capitães da sociedade.
As cabeçorras começaram no passado distante, quando grandes figurões desfilavam suas figuras exaltadas pelas ruas durante as festas populares, acenando e acenando solenemente para o povo comum.
Em zombaria, alguns membros do povo comum se vestiram de forma semelhante para desfilar, imitando os poderosos de sua época, fazendo cabeças de pessoas poderosas específicas, balançando e mexendo as nádegas ridiculamente pelas ruas, acenando e cumprimentando o povo comum sobre quem “dominavam”.

“Zambiapungo” é um dos nomes Bantu (“Bantu” abrange uma ampla gama de povos) para o Deus Supremo, a grande divindade indescritível, acima e além de todas as outras. Nas comunidades baianas de Nilo Peçanha, Cairu, Boipeba (a área dos dendenzeiros, as palmeiras das quais o óleo de dendê é extraído das sementes do fruto vermelho que cresce abundantemente sob a folhagem das árvores), os zambiapungas, vestidos com trajes coloridos e que cobrem o corpo, com os rostos também cobertos, com buracos para os olhos e a boca e um enorme nariz costurado… desfilam na manhã do dia anterior ao Dia de Todos os Santos, fazendo um barulho capaz de levantar os corpos de todos aqueles cujas almas foram separadas, a fim de espantar (originalmente, de qualquer forma) as almas ruins nos arredores. Isso pareceria ser uma adaptação de um costume africano para se ajustar ao calendário cristão.

Algumas coisas podem ser explicadas. Outras coisas devem ser aludidas. Aquilo que transcende o racional deve ser vivido. Assim é o Carnaval em Salvador da Bahia, Brasil…
O Carnaval em Salvador é isso, meu irmão! Isso é, claro, se festas e multidões forem a sua praia. Em nenhum outro lugar chega perto. O Carnaval da Bahia não é de mulheres nubentes em penas no alto de carros alegóricos à la Carnaval do Rio. É VOCÊ lá fora nas ruas fazendo até cair. O Carnaval (como é escrito em português) de 2023 começa () e vai até () — oficialmente. Não oficialmente (e na prática), vai até a manhã da Quarta-feira de Cinzas, (), e depois segue no arrastão (o “redemoinho”), que começa na manhã de quarta-feira no Farol da Barra e vai serpenteando pela Avenida Oceânica até Ondina.
E aí você está lá na linda praia de Ondina, onde a festa continua…
O Carnaval em Salvador, de forma simples, é um desfile — ou dois desfiles na verdade (nos dois circuitos mencionados acima) — de trios elétricos. Um trio elétrico é um semirreboque enfeitado, carregado com milhares de watts de equipamento de som, com uma banda tocando em cima. Eles desfilam bem devagar ao longo de um dos dois circuitos do Carnaval, um mais próximo do centro da cidade, indo de Campo Grande (literalmente “Grande Campo”, o parque central de Salvador) até a Praça Castro Alves (nomeada em homenagem a Antônio Frederico de Castro Alves, o poeta baiano que, entre outras coisas, usou sua poderosa pena contra as injustiças da escravidão e da opressão política), e o outro indo da Barra até Ondina, ao longo do Oceano Atlântico.
O primeiro trio a existir foi um carro antigo (’29 Ford) com um motorista (Muriçoca, apelido que significa “mosquito”), e dois músicos (Dodô e Osmar) na parte de trás (o carro pode ser visto no museu da Lagoa da Abaeté em Itapoan; estreou em 1950).
No ano seguinte, Dodô e Osmar, que tocavam instrumentos de corda eletrificados de sua própria criação e se chamavam de dupla elétrica, adicionaram amigos, Reginaldo Silva e Themístocles Aragão (que se revezavam tocando, apenas um de cada vez) no triolim (violão tenor), tornando-se assim um trio elétrico (deixando o carrinho velho para trás e adotando uma caminhonete Chrysler Fargo).
Na primeira vez em que a fobica (carro velho) entrou nas avenidas, chegou um momento em que Osmar gritou para o motorista Muriçoca (Mosquito) parar um pouco… mas o carro continuava se movendo… Osmar gritando mais algumas vezes… até que Muriçoca finalmente percebeu o que Osmar estava dizendo e virou para explicar que a embreagem e os freios já tinham ido embora e ele tinha desligado o motor… a multidão estava empurrando-os para frente!

Esse primeiro trio (ok, duplo) introduziu o frevo — um estilo energético de música nativo do estado brasileiro de Pernambuco, ao norte (frevo vem de ferver) — no Carnaval de Salvador pela primeira vez. O filho de Osmar, o ilustre Armandinho Macedo, é o Jimi Hendrix local desse estilo (entre outros), tocando com maestria sua guitarra baiana (um modelo atualizado do instrumento inventado por seu pai na década de 40). Os trios formam o núcleo dos principais blocos. Paga-se para entrar em um bloco e recebe-se um abadá (um traje que consiste em uma camiseta personalizada — nesse sentido — embora um abadá, na realidade, seja uma longa túnica sem mangas de origem africana ocidental), que permite desfilar com o bloco dentro do cordão (corda carregada pelos seguranças). Os trios são, em grande parte, o rosto e a fama do Carnaval em Salvador, mas, como sempre, a realidade é mais complexa do que geralmente é apresentada…
Os blocos de Carnaval (blocos, como em grupos de pessoas) desfilam há muito tempo em Salvador, e Salvador também teve escolas de Carnaval em tempos passados (existem diversos nomes para as aglomerações carnavalescas: blocos, escolas, cordões, afoxés e ranchos… às vezes, os nomes são usados de maneira flexível, sobrepondo-se, com definições que variam de pessoa para pessoa… outra hora…). Normalmente, eram grupos de amigos, ou pessoas que trabalhavam juntas ou moravam no mesmo bairro. Após a ideia do trio elétrico pegar, com seu poderio musical, outra ideia pegou também…dinheiro! Descobriu-se que muitas pessoas estavam dispostas a pagar bastante por isso, geralmente fazendo pagamentos mensais ao longo do ano, para acompanhar seus artistas favoritos no topo de um palco móvel.
E como costuma acontecer quando o dinheiro governa a música, o denominador comum vence. Ironicamente, uma parte desse processo foi o sucesso, em 1986, de uma música simples escrita e interpretada por dois excelentes músicos, Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, Nega de Cabelo Duro (Fricote). A música axé estava no auge! Os trios com seu frevo já haviam tornado as escolas de samba de Salvador obsoletas na metade da década de 1970 e agora, em termos de popularidade, a revolução do Carnaval estava completa. A música axé continua dominando o Carnaval, junto com o samba-de-roda, o seu bastardinho ramificado e altamente vulgarizado, o pagode baiano, sendo a música axé (ah-SHEH) uma mistura híbrida pop comercial de qualquer coisa, incluindo estilos de danceclub americano/europeu (nomeada para a força vital africana ocidental axé, combinada com a música de língua inglesa, em uma crítica irônica às suas pretensões, mas o nome pegou, mesmo assim).
A cobertura televisiva do Carnaval em Salvador também é dominada pelos grandes blocos comerciais, com DVDs disponíveis após qualquer Carnaval em questão, indiscutivelmente (pelo menos até agora) apresentando as bandas de dinheiro. E, pelo menos em um aspecto, algo de bom sai disso: os blocos comerciais fornecem trabalho para uma série de músicos de primeira linha que encontram esse trabalho escasso no restante do ano.
Mas há mais no Carnaval do que isso! Graças aos afoxés, e aos blocos afros! Graças a Deus o samba — com seu balanço de origem bantu — voltou com força total! A chama foi reacesa em 1975 com a criação do Bloco Alvorada (alvorada é o romper da aurora) por um grupo de estudantes (que, claro, amadureceram e se tornaram eminências grises, mas sem deixar o samba morrer), e depois oxigenada e brilhada ainda mais em 1983 quando Nelson Rufino organizou o Bloco Alerta Geral (“Alerta Geral”, como em “Boletim de Ocorrência”). Nelson fundou outro bloco de samba em 2004, o Amor e Paixão (Amor e Paixão)… três mil membros com chapéus Panamá desfilando e dançando em homenagem aos ideais dionisíacos, de origem africana.
→ Os três circuitos do Carnaval são: • O Circuito Campo Grande – Praça Castro Alves, também chamado de Circuito “Osmar”, ou simplesmente “Avenidas”. • O Circuito Barra – Ondina, também chamado de Circuito “Dodô”. • O Circuito Pelourinho, também chamado de Circuito “Batatinha”.
O Circuito Osmar, ou Campo Grande – Praça Castro Alves, é o Circuito original do Carnaval de Salvador (pelo menos desde os anos 50; o local e o que é o Carnaval, na verdade, é uma história um tanto complicada dependendo de quando). A abertura oficial do Carnaval é em Campo Grande, e é lá que os grandes políticos ficam e onde os blocos de Carnaval são julgados. Os trios saem de Campo Grande e descem pela Avenida Sete de Setembro (geralmente chamada de “Avenida Sete” pelos locais) até a Praça Castro Alves. De lá, eles viram a esquina e fazem seu caminho de volta a Campo Grande pela Rua Carlos Gomes, que corre paralela à Avenida Sete. O percurso leva cerca de seis horas para ser percorrido (ou “rastejado”, talvez seja uma palavra melhor!).
A denominação “Osmar” é uma homenagem a um dos dois criadores do trio elétrico. O Circuito Dodô, ou Barra – Ondina, foi adicionado em 1992 (quando ainda era secundário em relação ao circuito Campo Grande – Castro Alves). Os trios começam no Farol da Barra e seguem em direção ao norte, ao longo do oceano, até Ondina. O percurso leva cerca de quatro horas. Hoje em dia, há uma tendência de que os nomes maiores toquem neste circuito, pois é visto como mais desejável (uma visão que eu não compartilho necessariamente) por muitos jovens da classe média de Salvador, os que têm dinheiro para se juntar aos blocos maiores. A denominação “Dodô” é uma homenagem ao outro criador do trio elétrico.
O Circuito Batatinha passa por Pelourinho, a Cidade Alta. A denominação “Batatinha” é uma homenagem a Batatinha (Oscar da Penha), morador de Pelourinho durante sua vida, sambista e compositor de músicas maravilhosas. Batatinha morreu em 1997, aos 72 anos, e se você estiver perto de Campo Grande, pode parar no Bar Toalha de Saudade — de propriedade do filho de Batatinha, Vavá — na Ladeira dos Aflitos (não muito longe do topo da rua, à direita, enquanto você desce). Aliás, o bar foi nomeado por uma música de Batatinha, na qual ele conta a verdadeira história de um encontro casual durante um Carnaval de anos atrás… uma linda jovem surgindo do nada, pedindo a Batatinha para emprestar a toalha que ele estava carregando (parte de seu kit de escola de samba) para enxugar o rosto. Ela agradeceu pela gentileza e se perdeu de vista na multidão, deixando Batatinha preenchido com apenas saudades, seu doce perfume e pensamentos sobre o que poderia ter sido…
Durante o Carnaval, as praças de Pelourinho ficam repletas de música de diversos estilos brasileiros… é especialmente gratificante ouvir a grande banda de metais de Fred Dantas tocando sambas de carnaval e marchinhas da idade de ouro da música brasileira (que coincidia com a era do Great American Songbook). É como entrar em um passado ainda mais vibrante do que o presente.
A Mudança do Garcia (mudança significa “mudança”) é uma marcha de Carnaval do bairro da Fazenda Garcia até o Carnaval no Campo Grande. Começou como um protesto do vereador Herbert de Castro contra a falta, na época (década de 1950), de ruas pavimentadas, iluminação pública e água potável constante na região. Os manifestantes carregavam penicos em protesto, junto com cartazes satirizando os políticos e suas políticas pérfidas. O prefeito da época, Hélio Machado, devido ao protesto, realmente garantiu que melhorias fossem feitas na área, mas o “segredo” já havia sido revelado e a mudança continua até hoje, toda segunda-feira de Carnaval.