A razão concreta — ou melhor, de pedra — para o nome deste bairro foi retirada no dia 7 de setembro de 1835. Mas a metáfora permanece, ecoando pelos becos do Pelourinho como os lamentáveis protestos de espíritos agredidos.
“Pelourinho” significa pelourinho. E o pelourinho de Salvador permaneceu no topo da inclinação do Largo do Pelourinho, ponto final de uma jornada que começava no primeiro mercado aberto da cidade, na Praça da Feira (hoje conhecida como Praça Municipal — a praça aberta no topo do Elevador Lacerda).
O pelourinho ficava no centro do mercado. Então, em algum momento entre 1602 e 1607 — período da Governadoria de Dom Diogo Botelho — o pelourinho foi transferido por decreto do governador para o Terreiro de Jesus. Mas o Terreiro de Jesus era o local da igreja e da escola dos Jesuítas, e os gritos e gemidos interferiam nos serviços religiosos e nas aulas. Então foi retirado novamente e reposicionado no pé da Ladeira de São Bento (onde hoje se encontra a Praça Castro Alves).
Mais uma vez foi removido, pela penúltima vez, em 1807, e levado para o largo que viria a receber o seu nome. Ficaria ali por mais 28 anos.


Espíritos e Espírito do Pelourinho
Camafeu de Oxossi era uma força da natureza. Nascido em 1915 em Gravatá (do outro lado da rua do Pelourinho), seu pai faleceu quando Camafeu tinha sete anos, e não gostando da forma como era tratado pelo novo padrasto, ele saiu para se virar nas ruas de Pelourinho e arredores.

Camafeu foi batizado Ápio Patrocínio da Conceição, mas, segundo Jorge Amado, “Ápio Patrocínio da Conceição não existia, era apenas um apelido que lhe deram quando ele nasceu.” O batismo foi cancelado após uma sorte grande em um jogo de sorte, uma aposta, em Pelourinho. O homem que ele arrasou o chamou de “Camafeu” (camafeu é um relevo em baixo-relevo) em referência a um personagem sortudo de um filme que estava passando na cidade na época. A parte de Oxossi veio depois, por isso: Camafeu tinha uma barraca chamada Barraco de São Jorge no antigo Mercado Modelo, e São Jorge, ou Santo George, é sincretizado com o orixá da caça no candomblé, Oxossi. Voilà! Um nome digno de uma lenda!
Camafeu estudou na Escola de Aprendiz de Artífice perto da Praça da Piedade, vendia cadarços, engraxava sapatos, trabalhou como marinheiro e depois nos cais de Salvador, eventualmente vindo a possuir uma barraca no Mercado Modelo (o primeiro Mercado Modelo, que foi incendiado em 1969, dizem que pelo prefeito).
Camafeu não levava o negócio a sério, festejava com os amigos ali, e acabou tendo que vender o lugar. O administrador do mercado lhe permitiu colocar umas tábuas sobre uma velha fonte e, nesse improvisado ponto, Camafeu vendia roupas e sapatos usados, eventualmente ganhando dinheiro suficiente para voltar ao jogo, comprando algumas barracas, e depois mais algumas, todas lado a lado, unindo-as.
Ali, ele vendia materiais para o candomblé (era um Obá de Xangô na casa de candomblé Ilé Axé Opô Afonjá) e vagava pelos corredores do mercado, berimbau na mão, cantando as cantigas de capoeira (também era um mestre de capoeira altamente respeitado).
Sua barraca era, segundo Jorge Amado, um ponto de encontro, um ponto de confluência, um conservatório musical. O Sr. Amado seguiu dizendo que a cultura em Salvador nasce, é nutrida e afirmada em lugares bem estranhos. Com sua ilustre caneta, ele imortalizou Camafeu em vários de seus livros, incluindo O Sumiço da Santa (A Guerra dos Santos), Pastores da Noite e Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Camafeu foi um Filho de Gandhy e foi presidente do afoxé de 1976 a 1982. Ele faleceu em 1994 e, em seu funeral, enquanto era enterrado no cemitério da Ordem Terceira de São Francisco, ao som da oração católica, uma canção em iorubá foi erguida aos céus pelo babalorixá Luís da Muriçoca, e todos os presentes se uniram ao canto.
Filhos de Gandhy
A sede dos Filhos de Gandhy (a grafia de “Gandhy/Gandhi” parece oscilar inexplicavelmente) é um lugar culturalmente vibrante para se estar nas noites de domingo, das 16h (mais ou menos) até as 22h (mais ou menos), entre o Dia dos Pais brasileiro (que ocorre em algum momento de agosto) e o Carnaval. Homens dançam como se estivessem em uma casa de candomblé, ao som de música ao vivo — ijexá percussivo — no grande salão no andar inferior, enquanto amigos e familiares comem abarás e bebem refrigerantes e cerveja no mezzanino. A vibe é muito, muito boa e o lugar fica muito, muito lotado. A entrada é gratuita. O endereço é Rua Maciel de Baixo (também chamada Rua Gregório de Matos), 53.
Filhos de Gandhy é uma entidade dedicada à paz, sua criação foi inspirada por um ato de violência no subcontinente indiano e suas manifestações, embora profundamente enraizadas na África, nasceram em Salvador da Bahia, Brasil. E, em comum com uma das grandes religiões do subcontinente, Filhos de Gandhy nasceu sob uma árvore — não uma árvore Banyan, mas uma mangueira, na rua íngreme (Rua do Julião, hoje chamada às vezes de Rua Campos Sales) que atravessa um dos bairros mais pobres de Salvador.
Os homens que estavam ali reunidos — estivadores, trabalhadores portuários — não faziam ideia de que estavam fazendo história; estavam simplesmente homenageando-a enquanto tentavam se divertir. O Carnaval estava prestes a começar e eles estavam formando um bloco (grupo de carnaval) próprio. Um dos homens sob a mangueira… Durval Marques da Silva — Vavá Madeira… sugeriu um nome. Foi adequado para todos, e o tema seguiu naturalmente. Pouco mais de um ano antes — em 30 de janeiro de 1948 — o grande líder indiano Mahatma Gandhi havia sido assassinado. Vavá sugeriu que honrassem esse homem que lutou de maneira tão profunda e alcançou tanto em uma nação que — como a deles — era assolada pela pobreza e cheia de injustiça social, um homem que usou a paz como um poderoso instrumento de mudança. Os outros gostaram da ideia, e assim nasceram os Filhos de Gandhy.
A paz seria também seu instrumento, tocado nos ritmos do ijexá, nos atabaques e agogôs. Um bloco de carnaval precisa de fantasias, e vários dos homens ali sob a árvore haviam recentemente visto um filme que chegou à Salvador sonolenta dez anos após sua estreia em 1939: Gunga Din, estrelado por Cary Grant e Douglas Fairbanks Jr. Foi uma escolha fácil; as fantasias emulariam as roupas do corajoso aguadeiro de Rudyard Kipling…
Tho’ I’ve belted you an’ flayed you,
By the livin’ Gawd that made you,
You’re a better man than I am, Gunga Din!
Mas havia um problema. O comércio no Porto de Salvador havia caído desde a guerra e o trabalho era intermitente. Além disso, o Governo Federal — uma ditadura — havia anunciado cortes de custos pós-guerra e a renda dos estivadores sofreu um golpe; o dinheiro estava apertado. Para o resgate vieram as trabalhadoras da região — as mulheres de Julião. Elas não só incluíam (algumas, não todas) esses homens entre seus clientes, mas também os consideravam amigos. Vários dos lençóis utilizados nos abadás (um nome dado às fantasias fluídas, inspiradas nas vestes usadas pelos escravos revoltosos da Revolta dos Malês de 1835 na Bahia) daquele primeiro ano foram emprestados por essas mulheres, e quando os homens desfilavam, as mulheres seguiam, com comida e bebidas na mão. Como a Sonya Marmeladova de Dostoiévski, a benevolência e generosidade não foram excluídas pela profissão delas.
Por que as mulheres seguiam os homens, e não desfilavam com eles? Não tinha a ver com restrições sociais. A preocupação estava, na maioria, com os inevitáveis acompanhantes que se juntariam das margens e marchariam sem convite. A ideia era que restringir os desfilantes a homens — homens que não estavam consumindo álcool enquanto desfilavam — ajudaria a garantir o reinado da paz naquela pequena parte do mundo sobre a qual os Filhos de Gandhy tinham algum controle pessoal. Eram, claro, estivadores indo para o Carnaval — não santos tocando harpas no Céu — e o álcool acontecia às escondidas. Mas o espírito governante da regra foi observado, mantido e preservado, e o desfile dos Filhos de Gandhy durante o Carnaval na Bahia passou a ser um símbolo icônico de dignidade e fraternidade.
Os Filhos de Gandhy começaram como um bloco. Tornaram-se um afoxé. Qual a diferença? Um bloco de carnaval é qualquer grupo que desfile junto durante o Carnaval. Um afoxé é um grupo que utiliza percussão religiosa e dança em contextos seculares, sendo a religião, neste caso, o candomblé de origem africana ocidental. Blocos de carnaval da época incluíam instrumentos de sopro, e os Filhos de Gandhy tocavam exclusivamente instrumentos de percussão. Além disso, cantavam para Ogum, Ologum-edé, Oxalá, Oxum e Exu. O órgão governamental responsável pelo Carnaval disse que eles eram um afoxé. Os Filhos não discutiram a questão; votaram sobre isso. Um afoxé de espírito, tornaram-se um afoxé também no papel.
Os anos passaram e a organização vacilou. Houve problemas financeiros e o grupo se mudou de sede em sede. Apesar de todo o axé (força vital) que carregavam consigo, nenhuma trajetória ascendente pré-determinada parecia aliviar seu caminho. As coisas ficaram tão ruins em um ponto que parecia que a organização teria que fechar. O fato de não ter fechado foi, em grande medida, devido aos esforços extraordinários de Camafeu de Oxossi.
Melancolia Brilhante e o Diplomata do Samba Baiano
Batatinha (Oscar da Penha, nascido em 5 de agosto de 1924 e, na juventude, morador do Beco do Motta, 2) tocava o caixote e compôs muitos sambas encantadores.

Entre as muitas canções encantadoras de Batatinha, há uma com uma origem particularmente interessante: Batatinha, ainda jovem, estava no meio das multidões vibrantes que fazem parte do Carnaval da Bahia, quando, da multidão, surgiu uma linda jovem, pedindo para pegar emprestada a pequena toalha bordada de Batatinha, um item comum nos kits de carnaval das escolas de samba da época. Batatinha atendeu ao pedido. A moça delicadamente secou o rosto e devolveu a toalha a Batatinha, agradecendo-lhe antes de desaparecer, nunca mais sendo vista (por Batatinha)… deixando na toalha seu perfume encantador e doces lembranças do que poderia ter sido, se ele talvez tivesse tomado a iniciativa…

Todo o prédio acima (incluindo a casa de Batatinha) foi tomado por um sujeito chamado Antônio, que é do estado brasileiro de Sergipe e que, portanto, é chamado de “Sergipe” (sehr-JEE-pee)… que administra um minimercado com os preços mais incríveis (e baratos) do mundo… é lá que eu costumo comprar minha cerveja em Pelourinho. Além disso, eu (e muita gente) gosto da total falta de pretensão do lugar (a gente pode levar as cervejas para as mesas espalhadas de qualquer jeito lá fora).
Três artistas que passaram a maior parte do tempo aqui em Pelourinho, na Cantina da Lua, são Batatinha, Riachão e Ederaldo Gentil. Acima, encontra-se um clipe dos três juntos cantando uma música de Ederaldo, Ederaldo cantando e tocando violão acompanhado pelos outros. Como sempre, as letras de Ederaldo são tocantes, comoventemente bem elaboradas. A tradução para o inglês segue abaixo…
Ouro e Madeira
O ouro afunda no mar, no mar
Madeira fica por cima, por cima
Ostra nasce do lodo, do lodo
Gerando pérola fina
O ouro afunda no mar
Madeira fica por cima
Ostra nasce do lodo
Gerando pérola fina
Não queria ser o mar
Me bastava a fonte
Muito menos ser a rosa
Simplesmente o espinho
Não queria ser caminho
Porém o atalho
Muito menos ser a chuva
Apenas o orvalho
Não queria ser o dia
Só a alvorada
Muito menos ser o campo
Me bastava o grão
Não queria ser a vida
Porém o momento
Muito menos ser concerto
Apenas a canção
Tive a honra de conhecer Ederaldo, um dos grandes bambas de Bahia (sambistas), um homem profundamente afetado pela queda do samba de seu lugar como a principal música popular da Bahia (substituído pelo que hoje é chamado de “música axé”), a ponto de cair em uma depressão profunda e, por anos, não sair de seu apartamento, raramente vendo alguém além de sua família imediata (principalmente sua irmã Denise, que cuidava dele)…
Agora, pode-se questionar a… estabilidade ou como se queira chamar… de alguém que se desvia tanto por causa da queda da popularidade de seu estilo musical, e a história é complicada (mais complicada do que eu mesmo sei), mas Ederaldo Gentil tinha uma grande distância para cair. Ele nasceu na área do Largo Dois de Julho e, quando criança, foi criado no vizinho bairro central de Salvador, Tororó, durante uma época (os anos 60) em que Salvador tinha escolas de samba. Ederaldo pertencia à escola Filhos de Tororó. Em 1967, seu samba-enredo “Dois de Fevereiro” venceu o concurso anual da escola, sendo a principal música com que a escola desfilaria durante o Carnaval. No mesmo ano, venceu o concurso de Melhor Música de Carnaval de Salvador com a composição “Rio de Lágrimas”. Seguiu vencendo a competição de Melhor Música de Carnaval nos três anos seguintes. Em 1969, Ederaldo teve algum tipo de desentendimento com os Filhos de Tororó, resultando no incrível fato (incrível para mim, certamente) de que das dez escolas de samba que desfilaram no Carnaval de 1970 na Bahia, nove delas saíram cantando uma composição de Ederaldo Gentil como samba-enredo! A única que não saiu cantando uma de suas músicas foi aquela com a qual ele teve o desentendimento!
Em 1972, ele se reuniu novamente com seus companheiros dos Filhos, e a escola desfilou naquele ano com uma composição de Ederaldo Gentil em homenagem ao 50º aniversário da mais amada mãe-de-santo da Bahia (sacerdotisa de candomblé) Mãe Menininha do Gantois, o samba “In-Lê-In-Lá”. Essa música também venceu o concurso daquele ano de Melhor Música de Carnaval. Nos anos seguintes, várias músicas de Ederaldo foram cantadas por estrelas da música brasileira de estatura nacional, incluindo Alcione, Leny Andrade, Eliana Pittman e outros, e Ederaldo gravou vários álbuns próprios. Ele era um membro estabelecido da realeza dos bambas da Bahia (eu os chamo de Ratpack Baiano), um grupo que tocava junto e bebia junto (geralmente na Cantina da Lua de Clarindo Silva, no Terreiro de Jesus), e que incluía Batatinha, Riachão, Walmir Lima e Edil Pacheco, todos grandes sambistas.
No final dos anos 80, o Carnaval mudou, e no Carnaval de 91, Ederaldo e alguns dos outros bambas tentaram seguir o caminho da música axé, em cima de um trio elétrico. Foi um fracasso e essa foi a última gota. Ederaldo se retirou. Em 1999, um grupo de músicos distintos, incluindo Gilberto Gil, Beth Carvalho, Elza Soares, João Nogueira e Carlinhos Brown, gravou um CD de composições de Ederaldo chamado “Pérolas Finas” para ajudá-lo financeiramente. Desde então, o CD se tornou um item de colecionador.
E assim eu estava lá, sentado no seu apartamento, conversando com o homem. Ele sofria de depressão clínica. Perguntei-lhe se ainda tocava violão, e ele respondeu que não. Ele tinha 65 anos, mas surpreendentemente parecia bem mais jovem. Eu disse a ele que ele não estava esquecido, muito pelo contrário. Entre os conhecedores do samba, ele era uma lenda. Não sei se ele percebeu. Ele morreu, mas (entre os conhecedores), ele é uma lenda.
* Bamba é uma palavra interessante. Em português, é alguém cujas pernas bambas (porque, por algum motivo — bêbado, doente —, não consegue sustentar a pessoa). Em Kimbundo, falado em Angola, “mbamba” é alguém que é mestre de algo. No Brasil, portanto, é um mestre do samba.


Luiz Dórea… Nego Fua, o Galo do Maciel, o cara mais durão da Bahia (aposentado), com cicatrizes de facadas e balas para provar isso.
Fua morou na esquina da Rua Maciel de Cima (João de Deus) com a Rua J. Castro Rabelo por cerca de sessenta anos, com seu Bar Galícia no térreo. Há alguns anos, eu mesmo o vi, já envelhecido e debilitado, se meter em uma briga de esquina entre dois jovens, um armado com faca, e separar a briga. Fua é uma lenda local e um homem de temperamento doce, querido por todos na comunidade. Sua esposa, Morena, vende churrasco na esquina nas noites de fim de semana.
Há um ótimo samba no Bar de Fua (administrado por sua filha Tati) às noites de sexta-feira, sábado e terça-feira, começando mais cedo nas sextas-feiras, por volta das 21h30 (às vezes, se parecer que as coisas vão ficar lentas em Pelourinho, o samba é cancelado).
Igrejas de Pelourinho: Ricas, Pobres e Caídas


É quase como se o Sr. Cravo tivesse uma fixação em criar representações da história caída. Outra de suas obras é A Fonte da Rampa do Mercado Modelo, abaixo na Cidade Baixa. Esta está localizada no local e representa o antigo Mercado Modelo — mercado da cidade — que foi destruído por um incêndio em 1969 (rumores indicam que tenha sido um ato do então prefeito).


A primeira alfândega de Salvador foi construída na cidade alta pelo governador Tomé de Souza em 1550. Eventualmente, alguém percebeu que seria mais fácil ter uma alfândega perto da água, de fácil acesso para os navios que chegavam, e uma nova alfândega foi construída no local atual em 1861. Ela funcionou lá até 1914, quando novos armazéns portuários foram construídos e as funções aduaneiras transferidas para eles. A alfândega abandonada e inutilizada foi ocupada por vendedores de artesanato que se mudaram depois que o Mercado Modelo original (construído em 1912) foi incendiado (em 1969). Houve uma espera de dois anos enquanto a alfândega era reformada, e ela (ou o novo Mercado Modelo, na verdade) está em operação desde 1971.

Uma sociedade leiga de escravizados libertos e não libertos, que até então cultuava em um altar lateral na Igreja da Sé, construiu sua própria igreja — a construção começou em 1704 — no Largo do Pelourinho. Essas lindas torres azuis só foram iniciadas setenta e seis anos depois, em 1780. Não surpreendentemente, as representações dos santos no interior são de homens e mulheres negras.
Nossa Senhora do Rosário foi o nome dado à Virgem Maria por São Domingos de Gusmão, fundador dos dominicanos, que “recebeu” um rosário de Maria em uma igreja no sul da França por volta do ano 1200. Os dominicanos fundaram a irmandade leiga do Rosário em Colônia, Alemanha, em 1408… a irmandade chegou ao Brasil em 1685, tornando-se eventualmente uma sociedade de homens negros. Antes de construírem sua própria igreja, os irmãos se reuniam em um dos altares laterais da Igreja da Sé (que ficava na atual Praça da Sé e foi destruída em 1933 para dar lugar a um ponto de virada para os bondes de Salvador) diante de uma estátua de Nossa Senhora do Rosário. A estátua foi posteriormente transferida para a nova igreja e permanece lá até hoje.
Eu diria que este é o único edifício no Centro Histórico de Salvador que não foi construído por trabalho escravo, dado que os escravizados envolvidos na construção estavam construindo para si mesmos… Uma missa especial é celebrada nas noites de terça-feira, às 18h, com percussão yorubá.
Não deve ser confundido com a percussão de Olodum, como neste clipe de Spike Lee filmado no Largo do Pelourinho (embora a percussão da música de Michael seja uma outra questão, o estilo geral que Olodum toca tem suas origens na percussão de Ilê Aiyê, e essa era uma estilização do samba de roda, criação dos bantus na Bahia; os yorubás chegaram depois).



Thijs Weststeijn tem uma monografia lindamente concebida e escrita sobre os azulejos do claustro aqui…

À esquerda da Escola de Medicina está a igreja que deu nome ao Terreiro de Jesus. Esta é a Catedral Basílica, e o nome em questão deriva do fato de que a catedral foi fundada pelos jesuítas.
Mais especificamente, a catedral foi fundada pelo padre jesuíta Manoel da Nóbrega, que, entre outras atividades, escravizou indígenas para trabalho forçado…tempo de retribuição pela sua santidade ao tornar a última parte de seu sobrenome (brega) sinônimo no Brasil de bares de classe baixa, a música tocada neles e prostituição (isso porque uma rua que uma vez levou seu nome era ladeada por tais estabelecimentos).
O padre Nóbrega não foi o único membro da Companhia de Jesus a se envolver em atividades extremamente não compatíveis com os ensinamentos de Jesus. A Companhia acumulou plantações de açúcar (trabalhadas, claro, por escravizados), fazendas de gado…prosperando enormemente até serem expulsos do Brasil em 1759.


Sob o altar principal da catedral está sepultado o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, flagelo dos índios Caetés (declarando guerra contra eles por terem comido o primeiro bispo do Brasil; mas, em troca, Sua Excelência era um escravizador de índios).
Mem de Sá foi pai de Estácio de Sá, fundador da cidade do Rio de Janeiro. O nome de Estácio foi dado a um bairro (Estácio de Sá, bem naturalmente), que se tornaria sede de uma escola de ensino (Escola Normal). Também se tornaria lar de um grupo de jovens que, no final dos anos 1920, desejavam um samba mais adequado para desfiles de Carnaval do Rio do que o samba de dança importado da Bahia. Para isso, deixariam de lado o que Jelly Roll Morton, falando sobre o jazz de Nova Orleans de sua época, chamou de “toque espanhol”; a habanera, o um dois, e um dois, e um dois que move o samba baiano… e, ao fazer isso, dariam nascimento ao samba carioca. Esses jovens também diriam que, enquanto a escola de lá em Estácio ensinava as pessoas a ensinar, eles ensinavam as pessoas a sambar. Eles eram uma escola de samba! Dando forma a uma das duas coisas pelas quais o Brasil é mais internacionalmente famoso (junto com o futebol)… Esse leve estrondo que você ouve da catedral é Mem de Sá girando em seu túmulo.
E, finalmente, não há nenhum marcador para re-comemorar o local onde ficava a coluna à qual os escravizados eram amarrados, espancados, humilhados e torturados… há apenas o nome, e cabe a nós fazer o que quisermos com isso.