Uma Introdução à Profunda e Esplêndida História da Música Brasileira

No Rio de Janeiro, na casa de uma ialorixá (sacerdotisa) nascida na Bahia que havia chegado ao Rio ainda jovem (parte do êxodo de baianos emigrando para a capital em busca de trabalho por volta da época da abolição da escravatura no Brasil), a música (na parte da frente da casa, pelo menos, mais sobre os fundos daqui a pouco) era…

…Então todo mundo já ouviu falar das abelhas assassinas, certo? A versão africanizada das abelhas melíferas europeias? A música no salão da casa de Tia Ciata era uma versão africanizada da música da qual ela descendia (polcas, valsas, mazurcas) depois de ser tocada cerca de 40 anos antes para as classes abastadas por músicos das classes mais escuras do Brasil. Os brasileiros pegaram a metronomicidade dos ritmos europeus e a fizeram – sutilmente, mas inconfundivelmente – respirar, dando-lhe ginga, e ao fazer isso, libertaram a música para voar, pairar, mergulhar e subir.

Estranho de se dizer, essa música, chamada choro – ou “choro” – é quase desconhecida fora do Brasil, assim como seu rei (de uma maneira tão cavalheiresca), Pixinguinha (seu nome de batismo era Alfredo da Rocha Vianna; seu apelido era uma versão do que ele era chamado por sua avó africana).

Brazilian Batutas
Os Oito Batutas, embora ‘batuta’ tivesse um segundo significado, uma gíria, tornando-se ‘Os Oito Cara legais’; Pixinguinha está na extrema esquerda..

Esses caras não eram legais à toa. Como os músicos de jazz americanos, cujo estilo seguiram (e que mais tarde viriam a influenciar) os deles, eram mestres de seus instrumentos. Isso foi e continua sendo um elemento dominante no choro, como ilustrado de forma belíssima em um vídeo descontraído de Raphael Rabello na casa de um amigo tocando Tico Tico na Fubá (composta por Zequinha de Abreu em 1917)…

Em 1989, Raphael fraturou gravemente o braço direito em um acidente de automóvel e foi forçado a passar por várias cirurgias. Durante esse período, recebeu sangue contaminado com o vírus da AIDS, que levaria sua vida em 1995. Ele deixou um número de gravações consumadas. Aqui está o trailer do documentário sobre choro de Mika Kaurismäki de 2005, Brasileirinho, que apresenta vários músicos atualmente ativos…

Então, o Brasil tinha homens elegantes de fraque tocando música que exigia a finesse de instrumentistas clássicos e a habilidade improvisacional de músicos de jazz, e tinha/tem jovens (e nem tão jovens) músicos de dedos rápidos trabalhando nesse idioma erudito em nossos tempos… mas e o samba, você pode estar pensando? A energia vibrante, a pura alegria ruidosa de tudo isso?

Bem, abaixo você ouvirá um samba em um estilo incipiente ao partido alto, um estilo popular até hoje (uma característica notável do Brasil é que os brasileiros, na maioria das vezes, tendem a não descartar sua música; ela se acumula, e estilos que seriam tocados como música de época nos Estados Unidos, como o ragtime, por exemplo, são tocados aqui como se nunca tivessem ido embora, o que não foram!).

3 Brazilian Musical Giants
P: Quem é João da Baiana?
R: Ele introduziu o pandeiro no choro e o popularizou no samba carioca (samba do Rio).
P: O que é um ‘pandeiro’?
R: É o que em inglês é chamado de ‘tambourine’ e geralmente, nos Estados Unidos (e com exceção de pessoas como Jack Ashford, do Motown Funk Brothers), é o instrumento entregue a quem não sabe tocar, para que não se sinta excluído. Nas mãos dos mestres brasileiros, é um instrumento incrível e definidor, que se tornou símbolo da música nacional do Brasil, o samba..

O homem sentado à direita na foto dos homens de fraque acima (Os Oito Batutas) é Ernesto Joaquim Maria dos Santos, mais conhecido entre seus amigos e pela história como Donga. Donga participou tanto da composição quanto da performance do primeiro samba de carnaval gravado (e referido como tal) no Brasil, Pelo Telephone.

Pelo Telephone: Brazil's first recorded Carnival samba
O começo de algo realmente, realmente, realmente grande! Samba no Carnaval Brasileiro!

Onde foi escrita Pelo Telephone (atualmente grafada, em conformidade com as mudanças oficiais na ortografia do português, Pelo Telefone)? Isso mesmo! Na casa de Tia Ciata! Foi cantada por Bahiano (Manuel Pedro dos Santos), assim chamado porque era de Santo Amaro, na Bahia, e foi o grande sucesso do Carnaval de 1917.

E o que era “pelo telefone”? O chefe de polícia do Rio havia (aparentemente) deixado saber aos bicheiros que comandavam o jogo de bicho, um jogo de azar comum (ainda existente e altamente envolvido no financiamento das escolas de samba do Rio), que seriam avisados por telefone quando estivesse prestes a acontecer uma batida policial, e isso se tornara um conhecimento comum. A letra original da música tratava disso de forma humorística, sendo alterada na versão gravada.

Por que um samba desse tipo seria escrito na casa de Tia Ciata? Tia Ciata, cujo nome verdadeiro era Hilária Batista de Almeida (os brasileiros adoram apelidos), nasceu em Santo Amaro, na Bahia, em 1854. Ela emigrou para o Rio em 1876, aos 22 anos, estabelecendo-se perto da Praça Onze, uma praça pública em uma área chamada Cidade Nova, essa área acertadamente apelidada por um de seus ilustres moradores, o sambista e pintor Heitor dos Prazeres, de Pequena África.

Roda de Samba
Roda de Samba por Heitor dos Prazeres

A maioria dos moradores da Pequena África eram, se não pessoalmente, então voltando uma ou duas gerações, de origem baiana (a mãe e o pai de Donga, por exemplo, nasceram na Bahia), e o movimento baiano para o Rio foi acompanhado por sua religião (candomblé) e suas cerimônias.

Agora, por essa época, a vertente dominante dessa religião se tornara a do último grupo étnico (de forma geral) a ser trazido para o Brasil, o dos Yorubás. Yaô (cantada por João da Baiana, cuja mãe – como indicado pelo seu apelido – era da Bahia) recebe o nome do título dado a um iniciado no candomblé Ketu, que é o candomblé dos Yorubás.

Candomblé initiate
Uma yaô

A música fala sobre uma festa de yaôs femininas, incluindo menções nas letras aos orixás de Ketu (divindades) Ogum, Oxalá, Yemanjá, Oxossi, Nanã Buruku e Xangô. Mas a percussão, o canto e a dança que se seguiram às cerimônias de candomblé tanto na Bahia quanto no Rio — e por extensão no quintal da casa de Tia Ciata — não eram os dos Yorubás, eram os do primeiro grupo étnico a ser trazido de forma forçada para o Brasil, principalmente para a Bahia, os Bantu. E nas suas cerimônias de candomblé, um candomblé denominado candomblé angola (em referência óbvia ao território de origem dos praticantes), os ritmos eram construídos em torno do que, em contextos seculares, viria a ser chamado…isso mesmo!…samba!

A partir deste ponto, o samba no Rio de Janeiro seguiu seu próprio caminho. Floresceu e brilhou em uma cultura urbana, subiu os morros do Rio junto aos pobres que não tinham onde mais construir seus barracos, tornou-se a música do rádio, música escrita por homens dos morros e cantada por estrelas do rádio que ganhavam muito mais, e se tornaria a música de um carnaval que eventualmente se estabeleceu na Praça Onze e que hoje em dia desfila dentro de um vasto Sambódromo localizado onde antes ficava a Praça Onze, assim como a casa de Tia Ciata.

The King of Samba
Sinhô, the King of Samba (O Rei do Samba)

Antes de deixar para trás a casa de Tia Ciata e seu lugar enormemente influente na história da música brasileira, outro participante assíduo das rodas de samba lá foi José Barbosa da Silva, mais conhecido então e agora como Sinhô, o Rei do Samba.

Antes que a era das estrelas do rádio realmente tivesse começado (devido a vários fatores, incluindo a mudança de transmissão de música clássica para popular, a introdução de novos microfones que permitiram um canto mais nuançado e a maior proliferação de rádios), Sinhô e sua música estavam em todos os lugares. Isso era, sem dúvida, samba (Sinhô também trabalhou em outros gêneros musicais relacionados), tocado dentro da(s) estrutura(s) métrica(s) do samba, mas para ouvintes não iniciados, isso poderia não soar tanto como samba, sendo às vezes chamado de samba amaxixado.

“Amaxixado” vem da palavra maxixe, que se referia primeiro a uma dança e depois à música tocada para acompanhar essa dança. Na verdade, o maxixe é um vegetal comum nas cozinhas brasileiras, mas como uma dança acabou sendo nomeada com o nome de um vegetal é um mistério. Uma versão é que o inventor da dança era alguém apelidado de Maxixe; outra é que a baixa estatura da dança (era uma dança de casais onde o homem dava passos bem entre as pernas da mulher) foi metaforicamente associada ao fato de que maxixes crescem ao longo das vinhas no chão (duvido dessa versão, ao menos a primeira soa plausível). Mas, seja qual for o caso, a música combinava elementos de lundus e polcas, sendo o lundu uma abreviação de calundu, calundu sendo uma celebração religiosa que deixou um tipo de dança (lundu) em contextos seculares, o que originou um estilo musical.

De qualquer forma, o maxixe era tocado sem instrumentos de percussão, então praticamente todo samba tocado da mesma forma recebia a denominação de amaxixado, ou simplesmente era chamado de maxixe.

Bide & Marçal
Bide (à esquerda) e Marçal (à direita) foram fundamentais no desenvolvimento do samba carioca.

Bide inventou um instrumento comumente usado no samba hoje, o surdo (um grande bumbo; “surdo” significa “surdo”), fazendo o primeiro a partir de uma lata grande que originalmente servia como recipiente para manteiga, e os sambas na casa de Marçal incluíam Francisco Alves e Orlando Silva, dois cantores de vozes douradas da era de ouro do rádio brasileiro.

Nelson Sargento
Nelson Sargento, da Mangueira. P: Por que Nelson Sargento está sentado diante de uma bandeira rosa e verde? R: Rosa e verde são as cores da escola de samba Mangueira, cores escolhidas por Cartola. Cartola sofreu críticas repetidas de que as cores não combinavam bem, que elas se chocavam, e ele respondia da seguinte forma: “O rosa é para o amor, e o verde é para a esperança, e como é que o amor e a esperança não combinam bem?” Uma resposta mais óbvia teria sido que ninguém nunca reclamou sobre mangas rosas penduradas entre a vegetação das mangueiras na colina onde a Mangueira estava localizada, mas Cartola nunca foi uma pessoa óbvia.

Cartola, um homem (apelidado) por causa de um chapéu, é considerado por muitos como a apoteose do samba. Em 1949, o novo presidente da escola de samba Mangueira escolheu um professor de música para escolher o samba-enredo (samba de Carnaval) da Mangueira para aquele ano.

Nelson Sargento comenta: “O professor escolheu o meu samba. Mas ele explicou: pela beleza, pela perfeição, por tudo, ele daria 10 para o do Cartola, e 6 para o meu. Agora, para o desfile, o meu era mais fácil, era melhor. O do Cartola, em termos de hoje (1949), não era comercial. … A música dele era muito elaborada, a linha melódica muito difícil.

Mas vamos voltar um pouco, para o outro cantor da época de ouro do rádio que frequentava a casa de Marçal, Francisco Alves. Sr. Alves foi parado na rua um dia por dois jovens sem dinheiro e pediu-lhe dinheiro. Ele respondeu que atenderia ao pedido deles se eles compusessem um samba para ele, ali mesmo, na hora.

Então, ali mesmo ele recebeu de um dos jovens “Qual Foi o Mal que Eu Te Fiz?” (Como Eu Te Farei Mal?), que ele gravou em 1932. Do outro, ele recebeu “Estamos Esperando” (Estamos Esperando), que ele gravou, junto com Mário Reis, também em 1932.

Como se pode imaginar, esses não eram dois jovens qualquer, sem dinheiro, eles eram dois gênios com os bolsos vazios, Cartola e seu amigo Noel Rosa. Noel Rosa era um jovem frágil, feito mais frágil pela sua incapacidade de comer alimentos sólidos, resultado de uma forcetagem mal sucedida durante um parto difícil, quebrando sua mandíbula antes de ele sequer sair do útero de sua mãe (coincidentemente e de maneira um tanto surpreendente, o médico que atendeu ao nascimento de Noel — dezesseis anos depois — atenderia ao nascimento de outra futura lenda, Antonio Carlos Jobim; o médico que usou a famosa pinça, no entanto, foi um colega que foi chamado para ajudar).

Noel foi operado duas vezes quando criança e sua mãe foi informada que sua condição melhoraria com o tempo, mas ela só piorou, deixando o jovem (morto aos 27 anos) com um perfil improvável e inconfundível, amado pelas massas de sua época e por gerações de fãs de samba posteriormente.

Noel Rosa
Noel Rosa, bamba

“Com Que Roupa?” de Noel foi o grande sucesso do Carnaval de 1931, sua inspiração veio quando a mãe de Noel, não querendo que seu filho arriscasse sua saúde indo para um samba com seus amigos, escondeu suas roupas.

Sua galera (grupo de amigos) chegou, chamando por ele para sair, e então viu Noel se inclinar na janela e responder “Com que roupa?” (a história não registra se ele eventualmente chegou ao samba ou não).

“Com que roupa?” se tornou a frase do momento na boca de um povo profundamente devoto à sociabilidade e, ao mesmo tempo, profundamente imerso na pobreza.

Com os anos 30, o Brasil entrou de fato na era do rádio, com a programação mudando de música erudita para popular, e nesse momento houve um desvio no caminho: as músicas eram compostas baseadas em um vasto patrimônio de formas, ritmos e canções que eram tocadas, cantadas e dançadas onde quer que as pessoas se reunissem para praticamente qualquer coisa, exceto a igreja: nos botecos (bares), nas quadras (pátios) das escolas de samba, nos quintais (pátios).

Mas elas eram cantadas por vozes de ouro em um estilo em evolução, muito próximo ao que era popular nos Estados Unidos na época, e para isso, o registro sonoro foi quase exclusivamente escrito nessas belas “vozes de rádio”.